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O limão e a limonada

Concentrando-se no desafio da implementação do novo Código Florestal, o autor aponta as principais instâncias de que dependerá esse processo e atenta para o tema da competitividade, omitido nos debates sobre a norma. Nessa seara, o autor critica o texto aprovado por deixar de estimular a produtividade e sinaliza oportunidades no Cadastro Rural e nos incentivos econômicos.

Vamos começar com a parte vazia do copo: gastaram-se 16 anos em discussões e ainda não sabemos se essa página da discussão sobre o Código Florestal está, de fato, virada. Ao longo desse período, perdemos oportunidades importantes para construir uma economia florestal, assim como para pôr alguma ordem naquele terreno de disputa – ou melhor, de conquista – que continua a caracterizar parcela expressiva do território nacional. Ficamos, ademais, reféns de bancadas parlamentares que dependem da insegurança no campo para justificar sua existência perante suas bases. A política do “quanto pior, melhor” foi fortalecida e, como sempre, gerou comportamentos oportunistas também em segmentos da sociedade civil. A nova norma vigente prioriza a anistia e não alcança o desafio de passar a regular as funções contemporâneas de recuperação e uso das florestas: segue apenas focando a função convencional de conservação, herdada dos códigos dos anos 1930 e 1960 – mas um pouco enfraquecida.

Claro, agora a parte cheia do copo. O lobby ruralista, embora com esmagadora maioria em um Congresso que parece mais e mais distante da opinião pública, mal conseguiu atingir um terço de seus planos originais: a sonhada anistia ficou muito menor do que propunham seus promotores e, pelo menos, introduz um critério de progressividade inversa ao tamanho da propriedade. Isso parece atender a critérios sociais e ambientais, pois a maioria dos anistiados está entre os pequenos proprietários, mas a maioria da área com passivos está entre os grandes proprietários. Se as medidas previstas no novo Código forem implementadas, novidades como o Cadastro Ambiental Rural (CAR) e os incentivos econômicos – tanto para manutenção das florestas quanto para sua recuperação – têm potencial para inovar na maneira com que o poder público se relaciona com o mundo rural.

Se ambas leituras acima são legítimas e procedentes, além de complementares e não alternativas, o que fará a diferença no futuro próximo é a maneira em que o Código será implementado. Como todos tendem a imaginar, isso depende do governo, mas não apenas: dependerá também da Justiça (para começar), pois a nova lei apresenta ambiguidades expressivas, que podem levar a contenciosos. E a Justiça pode tanto ser capaz de gerar uma jurisprudência objetiva, que venha a nortear a implementação da lei, como de embrenhar-se em uma guerra de liminares que teria o efeito de aumentar a expressiva insegurança jurídica já existente no campo. Os advogados de porteira de fazenda, com certeza, agradeceriam.

Mas a implementação do Código dependerá também das lideranças do setor rural, sejam aquelas de categoria, sejam aquelas políticas – embora, recentemente, as duas tenham se (con)fundido de forma perigosa, com duvidosos resultados para o agricultor. Se continuarem as campanhas “não façam nada, pois eu resolverei em Brasília”, o boicote aos novos instrumentos como o citado CAR poderá levar à paralisia da norma como um todo, uma vez que esta dependerá do cadastro. Já se prevalecer uma abordagem pragmática para pôr ordem no campo, o governo pode ser levado pela demanda dos usuários e até acelerar os prazos demorados previstos pela lei.

Sem dúvida, dependerá igualmente da capacidade de mobilização e articulação da sociedade civil com os mercados para demandar avanços rápidos na implementação: políticas positivas de compra, padrões de certificação, integração das cadeias de valor podem fazer com que o produtor passe a ter interesse em um quadro de segurança e combate à concorrência desleal, que permita fazer os necessários investimentos no campo, em vez de empurrar prazos legais com a barriga.

E aqui chegaremos ao ponto-chave que ficou omisso nas discussões sobre a reforma do Código Florestal: era para ser – e não foi – uma discussão sobre competitividade, seja nos setores relevantes, seja do Brasil no cenário global. Os ajustes de produtividade necessários para que os setores menos avançados da agropecuária nacional passem a cumprir o dever de casa já parcialmente realizado pelas cadeias mais avançadas – como café, cana ou papel e celulose – são incompatíveis com uma abordagem de expansão horizontal da atividade na qual o interesse de especulação fundiária prevalece – ou até substitui – aquele de produtividade e retorno da atividade.

É neste quadro que assistimos, nos últimos anos, a um paradoxo: contrariamente a uma regra básica da economia, lideranças rurais no Brasil pregaram a manutenção de preços baixos ao agricultor e a entrada irrestrita de novos atores no negócio (com as duas tendências se reforçando mutuamente). Não é assim que vamos construir a competitividade brasileira nas próximas décadas. Não é assim que vamos construir territórios rurais caracterizados por indústria, serviços e tecnologia, com empregos qualificados, ao invés da convencional produção de commodities baratas e vulneráveis à conjuntura de preços. A tarefa de recuperação dos passivos florestais é fator crítico para tanto, por estar amplamente associada à produtividade (qualidade de solo, água, clima regional, polinização etc.); por ser determinante em atividades de diversificação da renda rural (desde piscicultura a turismo, desde gastronomia a energia); ou por acelerar o processo de tornar competitivas as tecnologias que reduzem a pegada espacial da atividade.

Uma estratégia de inserção competitiva do setor rural brasileiro no cenário global passa por aquilo que Ignacy Sachs chamou pioneiramente de “civilização da biomassa” – o que hoje passou a ser conhecido pela sigla 4F, formada a partir das iniciais das palavras inglesas food, forests, fuel and fiber (comida, florestas, combustível e fibras).

Nesse quadro, podemos descrever o desafio dos próximos anos – no que tange ao código florestal – como aquele de fazer do limão uma limonada: tanto por parte da sociedade como um todo, que deverá apostar no potencial inovador de algumas normas presentes em uma lei que, em geral, é considerada pelo mundo científico mais um problema do que uma solução; quanto por parte dos agricultores, que deverão aproveitar a parcial exigência de recuperação florestal da lei para aprender a fazer mais com menos (área ocupada). Portanto, a tornar sua atividade mais rentável e produtiva, assim como a comercializar um leque maior de produtos e serviços, como já acontece em outros cantos do mundo.

*Roberto Smeraldi é  Jornalista e diretor de políticas da organização da sociedade civil de interesse público (OSCIP) Amigos da Terra – Amazônia Brasileira e autor do Novo Manual de Negócios Sustentáveis (Publifolha, 2009). Twitter: @robertosmeraldi

Fonte: International Center for Trade and Sustainable Develepment

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