Matadouro fechado pelo Ministério Público do Trabalho em Minas Gerais: segundo o MP, situação de grande parte desses estabelecimentos no país é assustadora Prefeituras brasileiras em quase todos os Estados do país ainda são responsáveis atualmente pelo suprimento de carne bovina à população. O difícil acesso a muitos municípios, estejam eles no sertão nordestino ou no interior de São Paulo, e o volume de entrega considerado pequeno os excluíram do mapa de distribuição de grandes frigoríficos, jogando para o poder público a tarefa de abater bois.
Há ainda no país pelo menos 810 abatedouros registrados com inspeção municipal – isto é, o boi é comprado, abatido e consumido apenas no município. Desses, 85,9% estão nas mãos de Prefeituras e os 14,1% restantes com a iniciativa privada. Em alguns Estados, o número de matadouros municipais públicos é simplesmente a totalidade, caso de Alagoas (ver gráfico). Ou quase a totalidade, como em Pernambuco, onde apenas seis de seus 129 matadouros locais são particulares, e no Ceará, com 117 estabelecimentos municipais, 106 deles atrelados a prefeituras.
Intrínseco ao cenário rural do início do século passado, os “matadouros de boi” vinculados ao poder local não parecem causar estranhamento à população, mas suscitam uma série de dúvidas éticas, sanitárias e ambientais que começam agora a ser questionadas mais intensamente pelo Ministério Público Estadual (MPE) e pelo Ministério Público do Trabalho (MPT). Para essas representações, os desrespeitos à lei são generalizados, crônicos e alarmantes.
“É assustador o que se vê nesses locais. É uma realidade incompatível com os dias de hoje”, afirma Luis Henrique Rafael, procurador do Ministério Público do Trabalho de Bauru, que abrange mais de cem cidades do interior paulista. Após inspeções iniciadas em 2013 a partir de denúncias da sociedade civil, os Ministérios Públicos do Trabalho de São Paulo e de Minas Gerais abriram investigações contra dezenas desses estabelecimentos – quatro foram fechados só na região de Bauru.
Os procuradores identificaram desde serrotes enferrujados utilizados para desmembrar bois até a presença de crianças e animais domésticos próximos à área de abate. O descarte de sangue e restos bovinos em rios é outra contravenção ambiental comum nos estabelecimentos.
Talvez a principal explicação para esse quadro, de acordo com o MPT, seja a auto-fiscalização: servidores municipais da Vigilância Sanitária são os responsáveis legais pela inspeção dos matadouros municipais. “As Prefeituras podem manter elas próprias suas unidades de abate ou arrendar a terceiros. De qualquer maneira, quem vai querer se indispor com a Prefeitura ou um parceiro da Prefeitura?”, questionam os procuradores do Ministério Público do Trabalho.
Isso se tornou possível a partir de 1989, com a promulgação da lei nº 7.889, que criou o Serviço de Inspeção Estadual (SIE) e o Serviço de Inspeção Municipal (SIM), na tentativa de desburocratizar os processos e dar celeridade aos abates. A medida transferiu a competência da fiscalização sanitária e técnica de matadouros a municípios e Estados.
“Até então, a inspeção sanitária era federal ou não era. Agora, a lei nos impede de qualquer ingerência nessas esferas. Nós só entramos [no matadouro] por ordem de um juiz ou a pedido do próprio município”, afirma Luiz Marcelo Martins Araújo, coordenador geral de inspeção do Ministério da Agricultura.
O conflito de interesses entre o poder público e o privado é outra questão preocupante. Em localidades pequenas não é raro o prefeito ser também pecuarista e fornecer o gado bovino ao matadouro da cidade – ou um parente dele, ou, ainda, um doador de campanha. Os autos de investigação mostram também situações em que o matadouro é aberto aos domingos só para garantir o churrasco de amigos do prefeito.
“Nem no passado, muito menos nos dias de hoje, existe justificativa técnica ou jurídica que sustente a execução da atividade de abate de animais por conta de um município. A atividade não se insere no rol de serviços essenciais à população; logo, é uma atividade essencialmente privada. Só pode sofrer interferência do poder público quando houver violação às normas relativas à vigilância sanitária, segurança no trabalho e meio ambiente”, afirma o procurador Rafael.
Responsável pelo abate de 2,3 milhões de cabeças de bois em 2012 – de um total de 29 milhões de cabeças abatidas no país naquele ano -, os matadouros municipais podem ser uma ameaça à saúde pública, sobretudo aqueles com condições sanitárias precárias. Estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que os matadouros abasteceram quase 26 milhões de brasileiros residentes nas 810 localidades com abate municipal. A carne que saiu dessas instalações, muitas delas insalubres, foi diretamente para a mesa desses consumidores finais.
Um levantamento realizado no ano passado pela organização não governamental Amigos da Terra corrobora essa constatação. Intitulado “Radiografia da Carne”, o trabalho da ONG alerta para o fato de que boa parte desses estabelecimentos passou a funcionar sob influência de interesses e ingerências político-econômicas, em detrimento das condições sanitárias apropriadas. “Há uma situação de inconformidade sistemática, atingindo cerca de 80% dos empreendimentos”, afirma o estudo.
Roberto Smeraldi, diretor da ONG, afirma que a presença de veterinários antes e depois do abate do animal – uma exigência da lei – é ignorada na grande maioria dos casos. Esses profissionais são necessários para detectar eventuais doenças nos animais. “Raramente existe um veterinário na hora do abate. E mesmo com esses profissionais presentes, eles sofrem pressão para não exercer suas funções com o rigor necessário”, afirma Smeraldi. “A fiscalização inadequada por parte do veterinário expõe o consumidor brasileiro a mais de dez tipos de doenças graves”.
“Seja por falta de profissionais qualificados, seja por falta de equipamentos mínimos para a execução do serviço de inspeção, o que vemos é ineficácia ou total ausência do SIM [Serviço de Inspeção Municipal]”, afirma o procurador do Trabalho Geraldo Emediato de Souza, que lidera as investigações de matadouros em Minas Gerais, Estado onde a administração de quase metade dos estabelecimentos do gênero está nas mãos de Prefeituras.
Nos últimos meses, Souza presenciou o abate de animais no chão – com marretadas na cabeça -, crianças manuseando pedaços de carne do animal destroçado e a tentativa de um pecuarista de Itaúna de levar adiante o abate de um animal com tuberculose. “Eles só querem vender o boi que engordaram. Não estão nem aí. A pessoa que come carne no interior de Minas Gerais assume um risco grande sem saber”.
Nos municípios paulistas de Piratininga, Pederneiras e Parapuã, as Prefeituras optaram por fechar as portas a pagar o preço de se adequar. Segundo algumas fontes, dependendo das condições desses estabelecimentos o investimento mínimo para garantir condições adequadas de funcionamento é de R$ 500 mil.
Sandro Bola, prefeito de Piratininga pelo PSDB, diz que a decisão foi “uma conta na ponta do lápis”. Minimizando as acusações do MPT – “eles exageram” – o prefeito conta que a manutenção e operação do matadouro da cidade estava saindo caro para atender aos únicos dois açougues locais. “Um fazia a matança de três bois por semana. O outro, de 15 a 18 bois. Não compensava mais pra gente”, afirma Bola. Desde o fechamento, no fim do ano passado, os açougues passaram a mandar o gado para o abate em Bariri, a cerca de 60 quilômetros de distância de Piratininga, ou compram carne resfriada diretamente dos frigoríficos.
A Associação Brasileira da Indústria Exportadora de Carne Bovina (Abiec) reconhece a existência desses problemas e defende que a segurança alimentar independe da instância política. “É preciso que seja adotados os mesmo parâmetros de controle. Não existe, no mundo de hoje, a possibilidade de Prefeituras competirem com a iniciativa privada”, diz Antônio Camardelli, presidente da entidade. Ele acredita, no entanto, que cabe também ao Conselho Nacional de Veterinários punir profissionais que não desempenharem sua função por pressão política.
As denúncias envolvendo os matadouros públicos não são recentes e já levantaram comentários até de ministros da Agricultura, que defenderam o seu fim.
Para quem acompanha o setor, a força do mercado dará conta de reduzi-los até a extinção. “No início esses matadouros faziam sentido para um país continental como o Brasil. A distribuição era precária e o poder público teve de se encarregar de distribuir proteína para a população”, afirma José Vicente Ferraz, especialista em carnes da Informa Economics FNP. “Mas minha percepção é que eles já estão acabando. Na verdade, não passam de um açougue um pouco maior”.
Por: Bettina Barros
Fonte: Valor Econômico