A pequena Sofia Marques tinha 9 meses quando uma avalanche de lama com rejeito de minério de ferro invadiu sua cidade, a mineira Barra Longa, na madrugada de 6 de novembro de 2015. Dois anos depois, ela vive à base de antialérgicos, corticoides e broncodilatadores e sente uma dor forte na perna que os médicos não conseguem explicar.
Ao contrário do que aconteceu com os distritos rurais de Bento Rodrigues e Paracatu, cujos moradores foram transferidos para Mariana depois que seus vilarejos foram soterrados pelo rompimento da barragem da mineradora Samarco, em Barra Longa os atingidos, em sua maioria, não foram desalojados. Eles permaneceram na cidade durante sua reconstrução.
Parte da lama foi removida no decorrer de um ano após o desastre, parte foi aterrada no campo de futebol e no parque de exposições, parte virou bloquete de calçamento e parte secou, virou pó e se espalhou pela cidade com o fluxo de caminhões e veículos pesados.
Desde o desastre, os corredores da Unidade de Pronto Atendimento (UPA) e da Policlínica estão repletos de casos de alergias de pele e de doenças respiratórias. Como não há médicos especialistas nessas áreas na cidade de 6,2 mil habitantes, muitos casos são encaminhados para Ponte Nova, a 60 quilômetros.
O aumento de transtornos psicológicos também é relatado pela população, especialmente entre os mais velhos.
Os problemas de saúde que chegaram depois da lama são “evidentes”, diz Roberto Waack, presidente da Fundação Renova, que hoje responde pelas ações de reparação da mineradora e de suas controladoras, Vale e BHP Billiton.
Para lidar com a situação aguda inicial – os problemas respiratórios, as alergias e as doenças de fundo nervoso -, ele diz, a fundação contratou 22 profissionais de saúde para proverem atendimento ambulatorial em Barra Longa e outros 80 em Mariana.
Também serão realizados estudos para entender os “efeitos de longo prazo” sobre a saúde das populações atingidas, acrescenta Waack, para tentar estabelecer relações de causa e efeito para as doenças e verificar possíveis contaminações por metais pesados.
Escolha
Sem especialistas na cidade e diante da dificuldade de marcar uma consulta em Ponte Nova pelo Sistema Único de Saúde, a mãe de Sofia, Simone Silva, passou a levá-la a um médico particular na cidade vizinha, que lhe cobrava R$ 250 pela consulta.
Foi o imunologista que, em setembro do ano passado, assinou o laudo que afirmava que a menina tinha alergias na pele e dificuldade para respirar por causa da exposição à poeira de rejeito de minério.
A Renova havia solicitado o documento para que liberasse o pagamento de parte do tratamento de Sofia, o que vem acontecendo desde junho deste ano.
Ainda assim, a família tem dificuldade de arcar com as despesas da casa, que aumentaram nos últimos dois anos. Por causa das complicações da pequena, os gastos no supermercado cresceram e a conta de água mais que dobrou. A pele de Sofia descama, arde e, por isso, ela toma vários banhos por dia.
Simone, que até o ano passado era auxiliar de serviços gerais, o marido, que trabalha em uma fábrica de rações, e o filho de 15 anos também vêm apresentando problemas de saúde, mas só a menina frequenta a rede particular. “A gente precisa escolher quem vai se tratar, e a prioridade é a Sofia.”
Desde que mexeu na lama nos dias seguintes ao desastre, o marido tem uma ferida na mão. Mesmo com o uso de medicamentos receitados pelos médicos da UPA, ela não cicatriza.
Simone faz acompanhamento psicológico na rede pública. Em uma noite do ano passado, conta, enquanto estudava para as provas da faculdade de artes visuais – o caminho que encontrou para buscar um salário melhor -, ela teve um surto.
“O barulho de construção não parava. Eles estavam trabalhando em três turnos. A cidade inteira parecia um canteiro de obras. Eu tava cansada, tinha a Sofia… simplesmente levantei e atirei o computador no chão”, conta.
Ela começou a trabalhar neste ano como professora de artes em uma escola municipal em Acaiaca, cidade vizinha.
Um ano com lama no quintal
Risperidona, nortriptilina, clonazepam. O pai de Odete Cassiano toma diariamente um coquetel de medicamentos para evitar os surtos episódicos em que saía na rua gritando que queria ir embora de Barra Longa.
Sua casa, na beira do rio Carmo, afluente do Doce, está entre aquelas que foram diretamente afetadas pela lama que invadiu a cidade em 2015. Ela entrou pelo quintal e subiu um metro e 73 centímetros do porão.
Carregada de entulho e de tudo o que conseguiu arrastar desde a barragem Fundão, a dezenas de quilômetros, a lama tinha, ela lembra, um cheiro forte e desagradável. “Nos primeiros dias a gente teve irritação na pele, calombo, queda de cabelo, dificuldade para respirar”, conta a aposentada.
A lama passou um ano e um mês nos fundos da casa, antes de ser removida. Hoje limpo, o quintal de Cassiano – que viveu 34 anos na roça e se aposentou como produtora rural – era carregado de árvores frutíferas: uma mangueira, um abacateiro, pés de mexerica, de lichia. “O quintal era a diversão minha e do meu pai.”
Ela também cuida da mãe, que, além de fibrose pulmonar, passou a ter momentos de agressividade, chegando a mordê-la, e hoje toma fluoxetina, um antidepressivo. Uma de suas netas, que mora em Belo Horizonte e que a visitava quase todos os fins de semana, teve pneumonia quatro vezes no último ano. Ela não vai mais a Barra Longa.
“Se eu tivesse condições de sair daqui, sairia”, diz.
Em reforma
Além dos problemas de saúde, a aposentada se queixa da qualidade dos reparos feitos pela empresa em sua casa, que ganhou rachaduras na sala por causa do impacto da lama sobre a estrutura.
Ela conta que, depois de feito o conserto, que deixou uma grande mancha branca no meio de sua parede lilás, a equipe comunicou que faria o acabamento apenas na área recuperada. “Eu botei todo mundo pra fora na mesma hora. Onde já se viu? Eles vão ter que pintar a parede inteira”.
“Tudo é fonte de sofrimento, é a questão da saúde, é o combinado não realizado, a cor do piso que não tinha sido combinada”, pondera a psicóloga Diana Jaqueira Fernandes.
Ela se mudou em agosto do ano passado de São Paulo para Barra Longa, onde permaneceu até dezembro, para fazer a pesquisa de campo de sua tese de doutorado. O estudo falará sobre o trauma psicossocial decorrente do desastre.
A pesquisadora destaca que a desigualdade social tem um papel importante em tragédias como a que aconteceu no entorno de Mariana.
Os mais pobres, ela afirma, são os que têm menos recursos para gastar com a saúde física e mental e para lidar com questões de ordem prática que, muitas vezes, precisariam da orientação de um advogado. “Essas famílias sofrem muitas violências”.
O prefeito Elísio Pereira Barreto (PMDB) estima que 70 imóveis restaurados pela Renova precisam de novos reparos. Em seu primeiro cargo público, que assumiu em janeiro deste ano, ele afirma que o trânsito intenso de veículos pesados no último ano danificou trechos do pavimento, que precisaria ser recapeado, e diz que o ritmo de reconstrução da cidade desacelerou nos últimos meses.
Barra Longa chegou a ter entre 800 e mil trabalhadores mobilizados para a operação – número que, segundo ele, caiu para próximo de 100.
Um dos locais que segue em obras é o campo de futebol e o parque de exposições, ambos na saída da cidade. O parque de exposições chegou a ser usado como depósito temporário da lama que vinha sendo retirada da cidade.
Em agosto do ano passado, a Samarco foi multada em R$ 1 milhão pelo Ibama por omitir essa informação em documento oficial. Após a aprovação do plano de remoção de rejeitos apresentado por ela, foi decidido que o material seria aterrado e coberto por uma camada de areia.
A lama também foi usada para recobrir parte das ruas e da praça principal. Em duas fábricas nas proximidades de Barra Longa, diz Waack, ela foi transformada nos bloquetes que foram usados nas obras. “É positivo encontrar alternativas, deixar o rejeito onde ele está quando é possível. Ele é inerte.”
Fonte: BBC