A urbanização avança, muitas vezes, em conflito com os recursos naturais. Cidades como São Paulo sufocaram suas águas. Seria possível fazer diferente? É viável recuperar um rio, abrir seu leito e reincorporá-lo à paisagem da cidade? Valeria a pena investir nisso?
Experiências em várias partes do mundo indicam que essa é uma tendência internacional. Fora do país, há casos de recuperação de rios, mas também de construção de canais artificiais. Especialistas afirmam que, mais do que possível, é recomendável e necessário que as cidades brasileiras passem a dar um tratamento melhor às águas.
“É imperativo fazermos isso. A questão climática veio para ficar e tem gigantescas proporções. Se não enfrentarmos a questão, vamos ter muitos mais problemas. Precisamos recuperar a qualidade das nossas águas”, afirma o secretário de Desenvolvimento Urbano da cidade de São Paulo, Fernando de Mello Franco, pesquisador em arquitetura e urbanismo.
“A prioridade tem de ser o tratamento do esgoto. Também é preciso cuidar das nascentes, abrir os rios onde é possível, conservar o que está aberto, fazer parques lineares e proteger as margens”, diz o geógrafo Luiz de Campos Jr., um dos criadores da iniciativa Rios e Ruas, que procura os cursos d’água escondidos em São Paulo.
Defesa dos rios chegou ao Carnaval
Em São Paulo, os sinais de que a preocupação da população com os rios ganhou força nos últimos anos passam pelo surgimento de iniciativas como a do Rios e Ruas e até pela criação de blocos de Carnaval como o do Água Preta e o Fluvial do Peixe Seco, inspirados na hidrografia da cidade.
“Em São Paulo, você vê moradores que passaram a plantar nas margens de córregos. É um sintoma de que a relação da população com os rios não é de indiferença. Mas, por enquanto, eles nadam contra maré. É preciso uma política pública para nadar a favor”, analisa o arquiteto e urbanista Vladimir Bartalini, professor da FAU-USP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo).
A construção da estrutura para o fluxo de carros foi uma das principais razões para a ocultação de rios na capital paulista. Para o secretário Fernando Franco, São Paulo passa por uma mudança de cultura urbana e essa mudança pode levar a cidade até a diminuir o espaço dos carros para devolvê-lo aos rios, mas não no curto prazo.
“A gente vê isso em várias cidades do mundo. Não teria por que ser diferente em São Paulo. É um processo lento porque pressupõe duas coisas: investimentos altos e, sobretudo, mudança de cultura urbana. O momento é de revisão da nossa cultura urbana. Dependendo de para onde for esse movimento, acredito que a gente possa daqui a dez, 20, 30 anos ter outra cidade.”
Transformações na organização da mobilidade teriam, portanto, papel decisivo no processo. “O transporte coletivo ocupa muito menos espaço que o individual. Se a gente reduzir drasticamente o uso do transporte individual e ampliar agressivamente o uso do transporte coletivo, a gente vai poder trocar, em alguns situações, faixas de rolamento por reabertura de córregos e por parques lineares”, declara o secretário.
“Caiu a ficha de que é cretina a opção pelo carro”, afirma o arquiteto e urbanista José Bueno, outro responsável pelo Rios e Ruas.
Há, porém, casos de córregos que dificilmente voltarão à vista, como o da Mooca, na zona leste de São Paulo, e o Água Espraiada, na zona sul, ocultados, respectivamente, pelas avenidas Professor Luiz Ignácio de Anhaia Mello e Roberto Marinho. Atualmente, o Metrô está construindo sobre estas vias os monotrilhos das linhas 15-prata e 17-ouro, o que dificulta a revitalização dos leitos.
Os ganhos de se construir com a água
Responsável por uma pesquisa de mestrado na FAU-USP sobre a relação de São Paulo e de Paris com as águas, a arquiteta e urbanista Eloísa Balieiro Ikeda afirma que a capital francesa é um exemplo de cidade que constrói com a água. Ou seja, aproveita os recursos hídricos na estruturação urbana. Paris tem canais artificiais e possui equipamentos que permitem a moradores e turistas desfrutar dos rios e de suas margens.
Um cuidado maior com os rios, comenta Eloísa, também aumenta o potencial turístico e a chance de se evitar enchentes nas cidades.
Outro ganho de colocar os rios à vista e criar parques no entorno deles é o combate à ilha de calor formada nas grandes cidades em função da devastação de áreas verdes e da impermeabilização do solo.
Em São Paulo, acrescenta Campos Jr., haveria benefícios que poderiam se aplicar a outras cidades. “Podemos utilizar a água que tem aqui dentro. Qualquer ajuda é válida numa situação de crise [de abastecimento]. Com a recuperação dos afluentes, melhoraria a qualidade do Tietê. São Paulo tem invernos secos. Com rios recuperados, melhorariam a umidade do ar e o conforto ambiental.”
No Brasil, existem alguns exemplos de renaturalização e de reabertura de rios. Veja abaixo três casos.
Esteio (RS)
O PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) contemplou obras de drenagem de águas urbanas no país, mas só um projeto é tratado como de renaturalização: o do Arroio Sapucaia, em Esteio, na região metropolitana de Porto Alegre.
Orçado em R$ 19,5 milhões – R$ 18,5 pagos pelo governo federal; e R$ 1 milhão, pela prefeitura –, o projeto tem algumas etapas concluídas: a transferência de famílias que moravam às margens do arroio; a inauguração de uma avenida e de uma ciclovia elevadas que devem funcionar como dique e a construção de uma “bacia de amortecimento” para reservar até 14,8 milhões de litros de água na tentativa de combater enchentes.
O município gaúcho ainda trabalha na ampliação e no revestimento do leito e no plantio de mudas nas margens. A previsão é que os serviços sejam concluídos em abril. A Prefeitura de Esteio usa como base um estudo feito em 2006 pelo Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
O entorno do Sapucaia, diz o professor Joel Goldenfum, responsável pelo estudo, é uma “área crítica, densamente povoada e sujeita a alagamentos”. Ele acredita que a obra reduzirá o risco de inundações, mas avalia que seria necessário uma área maior de armazenamento para conter a água em períodos de cheia.
São Carlos (SP)
Em São Carlos, cidade situada 230 km a noroeste de São Paulo, o córrego Tijuco Preto recebeu duas intervenções. Em um primeiro momento, no começo dos anos 2000, a Prefeitura de São Carlos, na administração de Newton Lima (PT), reabriu e renaturalizou um trecho de 300 metros do córrego Tijuco Preto, próximo à nascente. Além disso, descartou o projeto que previa a extensão de uma avenida sobre a área.
Em uma parceria com pesquisadores do Departamento de Hidráulica e Saneamento da Escola de Engenharia de São Carlos, a prefeitura usou uma técnica de estruturação das margens que prescinde de paredes de concreto. “O sistema utilizado estabiliza o solo das margens e do fundo com recursos que se degradam conforme a vegetação cresce e assume o papel de fixadora do terreno”, afirma o arquiteto e urbanista Renato Anelli, professor da USP São Carlos e então secretário de Obras, Transportes e Serviços Púbicos. Entre os materiais utilizados, está o eucalipto não tratado.
Em 2009, a prefeitura decidiu reabrir outro trecho do Tijuco Preto. Os tubos que tampavam o canal desde a década de 1980 estavam corroídos.
A prefeitura obteve do Ministério das Cidades cerca de R$ 2,1 milhões — em valores corrigidos pela inflação — para fazer um novo canal aberto, construir galerias, fazer obras viárias e de paisagismo no entorno. Com extensão de 250 metros, o trecho é margeado pela avenida Trabalhador São-Carlense.
Jardim Botânico de São Paulo
Dois anos antes, algo semelhante havia acontecido na zona sul da cidade de São Paulo. A administração do Jardim Botânico constatou, em 2007, que o canal que escondia o córrego Pirarungaua sob a alameda Fernando Costa tinha problemas estruturais. Parte das paredes do canal construído em 1940 tinha desmoronado.
O Instituto de Botânica, vinculado ao governo estadual, decidiu, então, reabrir e regenerar o córrego, um afluente do Ipiranga, em cujas margens foi proclamada a Independência do Brasil. A obra custou em torno de R$ 2,3 milhões em valores corrigidos.
A reabertura consistiu na substituição do pavimento da alameda por um deque elevado feito com madeira reflorestada. O trecho dentro do parque tem 250 metros de extensão. A revitalização incluiu o plantio de espécies da mata atlântica nas margens. Quem vai ao Jardim Botânico pode ver o córrego e ter acesso a nascentes.
Por: Wellington Ramalhoso
Fonte: UOL Notícias