Prestem atenção nessas duas frases que aparecem com frequência na mídia:
– Autoridades justificaram-se afirmando que, nas primeiras semanas de janeiro, já choveu mais do que a média do mês nos últimos anos.
– Aqui, no Carnaval de Olinda, a festa não tem hora para acabar.
O que há de comum entre elas? Bem, nada muito além do fato de que são figurinhas que se repetem com impressionante regularidade. Para o repórter que transmite a folia pernambucana, a frase, quase um mantra da alegria, é indolor. Já a outra carrega, em seu bojo, duas tristezas: a consequência do aguaceiro em si e a responsabilização da natureza por algo que a ação humana poderia certamente minimizar.
Rohini Swaminathan é engenheira de informação geoespacial da Unitar, o instituto das Nações Unidas voltada a treinamento e pesquisa, localizado em Genebra, na Suíça, e já trabalhou com a Nasa. Ela treina lideranças e gestores na Ásia e na África para a implementação de sistemas para a redução dos riscos relacionados a desastres.
Rohini me explicou algo bem claro: chamamos equivocamente de ”desastres naturais” as mortes causadas por furações, inundações, entre outros eventos. Mas não há nada de natural nisso, pois já há tecnologia e protocolos para prever, reduzir e evitar o sofrimento causado. Como a retirada da população de um local, com antecedência, e a recolocação em outro, de forma decente e digna. Ou a melhoria estrutural de uma comunidade para evitar um deslizamento. Se não são implantados é por irresponsabilidade ou incompetência de gestores.
No Brasil, se choveu mais do que deveria, moradias deslizaram e pessoas morreram fica a impressão de que não daria para fazer nada, não é? Mas não é bem assim.
Desse ponto de vista, o que é desastre vira descaso e pode, inclusive, ser alvo de responsabilização judicial. Ou, ao menos, eleitoral. Se a nossa cidadania fosse exercida de fato.
Boa reportagem de Guilherme Azevedo e Wellington Ramalhoso, do UOL, mostra que 202 pessoas morreram por conta de deslizamentos de terra na Grande São Paulo nas últimas duas décadas, sendo 20 óbitos apenas no ano passado (dados do Instituto de Pesquisas Tecnológicas).
Vale lembrar que, ao longo do tempo, a especulação imobiliária foi expulsando os mais pobres para regiões cada vez mais periféricas, para encostas de morros e nascentes de rios. E, por lá, eles morrem quando a falta de planejamento e de efetivação de direitos desaba sobre eles.
Ocupação irregular e reforma urbana são expressões ouvidas apenas no tempo úmido e não fazem sucesso durante as eleições. Na seca, evaporam do léxico não só dos mandatários, mas também de pobres e ricos, que continuam construindo, desmatando e poluindo. Suas razões são diferentes, mas o efeito é o mesmo. Vale lembrar que tudo isso dito aí em cima não gera um voto, pelo contrário: quem é o doador que vai ficar feliz por ter a construção de sua casa em uma área de preservação ambiental embargada?
Em 2012, diante a da previsão de chuvas fortes, um profissional do Instituto Nacional de Metereologia ouvido em uma matéria da Folha de S.Paulo afirmou: ”Colocam a culpa na meteorologia, mas nós avisamos com antecedência. Se os governantes não tomarem providências, todo ano vai ser a mesma coisa: enchentes, carros boiando, deslizamentos”.
Providências que não incluem apenas um sistemas de alerta decente, para fazer circular informação rápida e efetivamente horas, dias ou semanas antes de um fenômeno natural – o que já existe em muitos países. Mas também a execução de políticas decentes de habitação, saneamento, contenção de encostas, dragagem de rios, limpeza de vias, campanhas de conscientização quanto ao lixo. Falhas neste caso custam vidas e um “foi mal, aí, não tinha como antecipar” não resolve.
Não precisamos de governantes otimistas, que acreditam na possibilidade de chover menos, ou de administradores religiosos, que rezam por uma trégua dos céus, terceirizando a responsabilidade para o Sobrenatural. E sim de gente realista, que tem o perfil de alguém que espera sempre o pior e age preventivamente, não culpando as forças do universo pelo ocorrido, muitos menos a estatística e a metereologia.
O Brasil tem ignorado, há anos, em seus planejamentos os estudos e relatórios internos que mostram que as mudanças climáticas já afetaram, de forma definitiva, nosso regime hídrico. E vai jogar para a população o preço, econômico e social, dessa incompetência ou cara de pau.
Quando um governo federal, estadual ou municipal usa o argumento de que estamos em um momento atípico para justificar um iminente cataclisma envolvendo água a uma região, apenas evidencia que não levou em conta que o clima está mudando em seu planejamento. Pois, se tivesse, a própria justificativa não faria sentido. Não é que chove abaixo ou acima da média. É que o clima mudou, essas médias não valem mais. Ou seja, o regime hídrico atual não é mais o mesmo daquele que vivenciamos no século 20.
Reclamamos da arrogância de Donald Trump, que afirma para o mundo que irá deixar de seguir os pactos firmados para reduzir o impacto da mudanças climáticas porque, simplesmente, não acredita nelas. Bradamos que esse comportamento negacionista não nos representa. Mas quando falamos dos desastres nada naturais daqui, muita gente não quer ouvir, não acredita, pouco se importa ou xinga quem reclamou – na mesma tática do novo presidente do Grande Irmão do Norte.
Por: Leonardo Sakamoto
Fonte: Blog do Sakamoto